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Admirável mundo novo tem como enredo social... o amor, alimentado ritualmente pelos "Cultos de Solidariedade". Em 1984, a teia social é o... ódio. Um ódio fortalecido a cada dia por um esporte ritual intitulado "Os Dois minutos de Ódio"
- (12/09/2000)
Admirável mundo novo e 1984 marcaram a história do século 20 ao anteciparem e denunciarem as primeiras formas das sociedades totalitárias. Porém essas "utopias" não teriam tido tanto sucesso se modalidades complementares e seus traços comuns não anunciassem, na era da globalização e da multimídia, os perigos de totalitarismos futuros. Um breve paralelo entre as duas obras torna isso evidente.
Admirável mundo novo é, antes de tudo, o quadro de uma sociedade capitalista triunfante. A máquina de produção-consumo, globalizada, exige uma perfeita normalização do "cidadão", mesmo antes de seu nascimento, através de manipulação genética, e pelo acondicionamento durante o resto da sua vida. Não há mais sujeitos, há massas anônimas, escravas de uma felicidade conformista que não escolheram.
1984, por sua vez, descreve uma sociedade totalitária de natureza "comunista". A economia da penúria e a ordem stalinista regem por todo o sempre os três super-Estados que partilham entre si o planeta. Os "cidadãos" sofrem uma disciplina física e mental conscientemente despersonalizante. Sua consciência reduz-se a uma ortodoxia pérfida, e sua existência, às delícias sado-masoquistas de uma infelicidade conformada.
Mais profundamente, Admirável mundo novo ilustra um totalitarismo da felicidade perfeita. A Cidade é uma Mãe, porém uma Mãe terrorista, que infantiliza e animaliza os cidadãos-bebês em nome de um "bem"comunitário do qual ninguém tem o direito de escapar.
1984 vai ainda mais longe, encarna um totalitarismo do puro poder. A ordem social regida aparentemente por um governante protetor (o Grande Irmão), na realidade obedece à lei do Pai sádico. Todos devem, literalmente, rebaixar-se a seus pés, sob seu olhar, e depois, da mesma forma, rebaixar seus "concidadãos", num complexo totalmente infantil de medo e ódio.
Admirável mundo novo tem como enredo social... o amor, alimentado ritualmente pelos "Cultos de Solidariedade". Porém trata-se de uma solidariedade impessoal, uma relação melosa com base numa sexualidade difusa, onde todo mundo "comunga" anonimamente.
Em 1984, a teia social é o … ódio. O ódio por tudo e todos que pudessem minimamente sair da linha, um ódio fortalecido a cada dia, diante da Tela, no momento do esporte ritual intitulado "Os Dois minutos de Ódio". Esse ódio é à base de histeria sexual: a sexualidade é reprimida para ser "convertida" em pulsão de poder.
Admirável mundo novo descreve uma civilização na qual a história não existe mais. A casta dirigente, para conservar eternamente sua dominação - sob o pretexto de fazer o bem dos homens, tem por objetivo essencial a "estabilidade social" obtida pelo amor à servidão. A finalidade proclamada é "fazer com que as pessoas gostem do destino de que não podem escapar..." O meio: as diversões audiovisuais que neutralizam a consciência crítica, e o "soma", uma droga que leva à euforia sem o tédio do hábito.
1984 também suprime a História, uma vez que houve a "Revolução"; a classe dirigente institui, publicamente, a fraseologia revolucionária para desencorajar antecipadamente qualquer idéia de revolução futura. Nega-se o passado, como o futuro. Jornais e livros - reescritos, se necessário for - comemoram um presente eterno; é a "realidade" inventada pela classe dirigente, na qual todos são obrigados a acreditar - a consciência coletiva fica sem memória: constitui-se a partir do consumo da atualidade oficial.
Em ambas as Cidades, a política é avaliada tomando o existencial por referência: estreitas relações ligam, em profundidade, a estrutura psíquica do indivíduo e a ordem político-social que o aliena. O mínimo ato de existência, a mínima pulsão aparentemente espontânea, são, na verdade, o reflexo ou o produto de modelos ideológicos interiorizados desde a infância. Do que resulta que o combate militante contra a opressão do sistema começa pelo trabalho psico-político de lucidez sobre si próprio...
O cidadão que reflita sobre essas obras aprende, portanto, que não há libertação coletiva sem a reconquista da liberdade interior.
Traduzido por Teresa Van Acker.