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Autor de obras marcantes, como ’Imperium’ e ’Ebano’1 , novo livro do famoso jornalista polonês narra a incrível e ridícula guerra entre Honduras e El Salvador causada pelos tumultos ocorridos durante as eliminatórias da Copa do Mundo, em 1969
- (01/07/2003)
A guerra do futebol – título do livro do jornalista polonês Ryszard Kapuscinky2 – também foi aquela guerra, ridícula, entre Honduras e El Salvador, em 1969, após os tumultos entre os torcedores das duas seleções nacionais pelas eliminatórias para a Copa do Mundo. Os combates fizeram 6 mil mortos e 15 mil feridos.
O autor, enviado especial da agência de notícias polonesa PAP, cobriu essa guerra fulminante, que durou cem horas, embrenhando-se, ao lado dos soldados de Honduras, na densa e asfixiante floresta da América Central. Viu agonizarem e morrerem, a seu lado, jovens combatentes esgotados pelo avanço implacável do exército adversário, enquanto sonhavam sair daquele inferno cheio de cobras venenosas para alcançar um vilarejo onde o chefe do batalhão lhes tinha prometido que seriam recebidos com uma festa e teriam uma moça para passar a noite. Uma moça dotada de um patriotismo ardente, sem dúvida, como Amelia Bolanos, uma salvadorenha de 18 anos que se suicidou com a pistola de seu pai quando viu, pela televisão, um atacante de Honduras marcar, já no finalzinho, o gol da vitória. A morte de Amelia foi homenageada, no dia seguinte, por um funeral quase-nacional, com o presidente de El Salvador, em pessoa, pelas ruas da capital do país.
Uma vez mais, Ryszard Kapuscinsky teve o extraordinário talento – e a coragem – de assumir todos os riscos da profissão, enfurnando-se nesse vespeiro da América Central de onde saiu por milagre. Foi também por milagre que escapou da morte, em 1966, na Nigéria, em meio a uma guerra civil feroz. Atravessava a região iorubá do país, em pleno delírio assassino, onde os adeptos do chefe do Action Group, Obafemi Awolowo, controlavam a passagem pelas estradas, levantando barreiras de árvores em chamas. Completamente drogados, imolavam, pelo fogo, todo mundo que tivesse o azar de não ter uma foto de Awolowo. Seu método – spray and lit – consistia em jogar gasolina na vítima e tocar fogo.
Indomável, o jornalista polonês também se aventurou durante a guerra entre a Etiópia e a Somália, no outono de 1976, na região do deserto de Ogaden, que era disputada por Addis Abeba e Mogadiscio. Ao lado dos soldados etíopes, descreveu um percurso extenuante, em land rover, num sol asfixiante, e na primeira noite foi picado por um escorpião. De noite, dormiam apavorados, com medo de um ataque dos soldados da Somália.
Todas essas passagens de bravura fazem parte das reportagens em que o autor analisa, em minúcia e de maneira esclarecedora, a situação política do país que está visitando. Kapuscinky cobriu boa parte da África: da independência de Gana, em 1957, nos tempos de Kwame Nkrumah, à Tanzânia, em 1963 e, em seguida, à Argélia, em 1965, por ocasião do golpe de Estado de Boumedienne, e à África do Sul do tempo do apartheid, etc. De certa forma, ele é possuído pela necessidade de viajar e conhecer pessoas e países longe de sua Polônia natal. E nada exprime melhor essa sede por viagens e descobertas do que a indescritível angústia que se abate sobre ele quando, por algumas semanas, se encontra sentado a uma mesa na sede da agência polonesa de notícias, em Varsóvia.
(Trad.: Jô Amado)
1 - Lançado no Brasil pela Companhia das Letras, São Paulo.
2 - Ler, de Ryszard Kapuscinsky, La guerre du foot et autres guerres et aventures, ed. Plon, Paris, 250 pages, 19 euros (63 reais).