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Ao receber o Prêmio Nobel da Literatura, o escritor sul-africano John Cotzee contou uma enigmática história que, na verdade, é uma metáfora que evoca o mistério da inspiração e da relação entre o escritor (ou o escriba?) com o narrador da escrita
- (01/07/2004)
No dia 7 de dezembro de 2003, quando recebeu oficialmente o Prêmio Nobel de Literatura, John Maxwell Coetzee não fez discurso, mas contou uma enigmática história de ficção, intitulada He and his man (Ele e seu homem), em que um homem, privado de nome e de passado, assiste a acontecimentos curiosos e, na maioria das vezes, dramáticos. Quem é esse homem que corre de um extremo a outro da Inglaterra? Por que ele “envia relatos” para um “ele” insólito? E quem é este, que vive sozinho com seu papagaio? Estas são algumas das perguntas do leitor a respeito do texto – concebido claramente para intrigar, tanto por seu estilo arcaico quanto por sua estrutura sutil.
Pouco a pouco, entretanto, os mistérios do texto se tornam claros, pelo menos em parte: “Ao escrever suas aventuras, adquiriu o hábito de escrever; isso o distrai o suficiente. À noite, à luz da vela, ele pega suas folhas de papel, aponta os lápis e escreve uma página ou duas sobre seu homem”, um negociante arruinado por uma terrível inundação... “E tudo isso – a enchente, a ruína, a fuga, a miséria, os pobres trapos, a solidão – que tudo isso seja uma figura do naufrágio e da ilha onde ele, pobre Robin (Robinson, na realidade), se achou isolado do mundo durante 26 anos até se tornar quase louco.”
Alguns parágrafos mais adiante, fala-se de um homem quase morto de bêbado que é posto numa carroça (é o ano da grande peste em Londres), no meio de cadáveres, e que acorda aflito: “Mas onde estou?, diz ele. Você está sendo enterrado com os mortos, diz o carroceiro. Mas então eu estou morto?, diz o homem.” E isso também é uma figura dele na sua ilha.
Embora faça sorrir no início, a ficção imaginada por J. M. Coetzee é rica de significados trágicos. Toda aventura humana é uma alegoria do destino de Robinson abandonado em sua ilha: todo homem é um “pobre Robin”, que sofre o naufrágio, a fome, a solidão e a proximidade da morte. Todo ser experimenta a dificuldade de comunicar e é levado, um dia ou outro, a gritar e a gesticular como um louco, sem que ninguém o compreenda: “O que chama ele (esse pobre infeliz) para além das águas e para além dos anos, desde que o fogo queima em seu interior?”
Por outro lado, Ele e seu homem(He and his man) é uma metáfora da escrita, meio parecida com o quarto livro de Coetzee, Foe, e evoca principalmente o mistério da inspiração e da relação entre o escritor (ou o escriba?) e o narrador, uma relação complexa e variável porque, às vezes, o narrador se parece com o autor mas pode, também, pode ser muito diferente dele. O que complica as coisas em Ele e seu homem é que essa narrativa de Coetzee implica uma outra narrativa, a de Robinson, sem esquecer aquela de Daniel Defoe, criando um efeito de encaixe dos mais sutis!
Se todo ser é uma ilha perdida na imensidão do oceano, escrever ficções é, talvez, uma das melhores maneiras de comunicar, uma garrafa lançada ao mar e que pode esbarrar na incompreensão, mas pode também suscitar o interesse, ou até a empatia, pois, por sua própria complexidade, por sua natureza ao mesmo tempo oblíqua e personalizada, o romance evita a simplificação abusiva ou mentirosa de muitas trocas...
(Trad.: Iraci D. Poleti)