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Há dez anos, os europeus reduzem a Bósnia à condição de um protetorado político e econômico. Com quem poderão, agora, negociar a incorporação do país à UE?
- (01/01/2006)
É preciso lembrá-lo? Os signatários de Dayton foram, pelas partes sérvia e croata, os presidentes Slobodan Milosevic e Franjo Tudjman… que haviam negociado secretamente, em 1991, a partilha étnica da Bósnia-Herzegovina [1] pelas costas de suas populações, principalmente dos muçulmanos [2]. Destes últimos esperava-se que se tornassem "sérvios", "croatas" ou, eventualmente, favoráveis a um Estado islâmico fantoche que Alija Izetbegovic foi tentado a aceitar... As formações paramilitares ultra-nacionalistas bósnio-sérvias e bósnio-croatas propagaram a violência com o objetivo de atiçar os temores e os ódios - e criar assim as condições para uma limpeza dos territórios que "aderiam" e se uniam aos Estados vizinhos que lhes haviam fornecido armas.
Uma parte das populações resistiu a esta engrenagem [3]. É porque, na época, os dirigentes sérvios e croatas, apresentando-se como uma "proteção contra o perigo islâmico" para melhor justificar o desmembramento da Bósnia-Herzegovina, instrumentalizaram esta equação mentirosa: maioria muçulmana igual a maioria islamista e, portanto, risco, para os Bósnios não mulçulmanos, de tornarem-se cidadãos de segunda classe, como no tempo do Império Otomano. Encurralados entre dois nacionalismos agressores, os muçulmanos corresponderam a cerca de 70% das 100 mil vítimas de limpezas étnicas (e não 250 mil, como se pensava até então [4]).
A solidariedade legítima do mundo muçulmano e a chegada à Bósnia de muhajidin aumentaram os temores manipulados por Belgrado e Zagreb. No entanto, foi principalmente nas regiões de maioria muçulmana - no sentido étnico-cultural - como a de Tuzla, que os partidos "cidadãos" tiveram mais êxitos, contradizendo a equação evocada mais acima.
Infelizmente, o presidente Alija Izetbegovic não se tornou o porta-voz destas aspirações: oscilando entre o projeto islâmico e o nacionalismo muçulmano bósnio, ele não podia consolidar um "Estado" comum para uma grande parte das populações bósnio-sérvias e bósnio-croatas; e se opôs, entre os bósnios muçulmanos, à orientação de uma resistência ligada à miscigenação bósnia [5]. As correntes anti-nacionalistas e hostis a um Estado muçulmano ofereceram-lhe, apesar de tudo, um apoio crítico. Viram-no como um mal menor, acompanhado de uma frágil esperança de preservar a Bósnia. Mas a esperança de uma intervenção estrangeira expressiva contribuiu para simplificar a forma de apresentação das questões. Contribuiu também para que se tratasse como "estrangeiras" as populações da Bósnia que se voltavam para os Estados vizinhos.
Nenhuma das grandes potências queria se envolver na guerra e correr o risco de perder homens ali (na Bósnia não havia petróleo). Os "planos de paz" negociados pelos europeus na ONU estabeleceram então a progressão das limpezas étnicas e foram inicialmente denunciados pelos Estados Unidos. Apresentando-se como defensores dos muçulmanos, os norte-americanos deleitavam-se com os fracassos da diplomacia da Europa e da ONU, ao passo que estimulavam o equilíbrio de forças militares: bósnio-croatas contra bósnio-sérvios. Dayton representava a aplicação da mesma política, estabelecendo as limpezas étnicas do verão de 1995 em Srebrenica [6], assim como na Krajina croata, consolidando simultaneamente o poder dos presidentes Izetbegovic, Milosevic e Tudjman, todos eles signatários.
O poder das populações sobre seu próprio destino passa, como em qualquer lugar, pela verdade sobre a guerra, suas causas e os crimes cometidos - com, condição prévia para qualquer reconciliação, a condenação dos criminosos. Infelizmente, o Tribunal Penal Internacional para a Iugoslávia (TPII) permanece demasiadamente prisioneiro das escolhas políticas hipócritas das grandes potências para impulsionar tal evolução [7]. Como se pode esclarecer o massacre de Srebrenica ou a expulsão maciça dos sérvios da Eslovênia e da Krajina, se estas duas limpezas étnicas produziram-se com total consciência das tropas internacionais, logo antes das negociações de Dayton? Como tornar verossímil a campanha contra Milosevic, durante os bombardeios da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 1999, quando ele foi, até aquela data, o ponto de apoio de todos os planos de paz ocidentais, especialmente em Dayton, e quando Franjo Tudjman jamais chegou a ser acusado? Enfim, como os acordos de Dayton poderiam unificar a Bósnia, enquanto constitucionalizavam lógicas inconciliáveis: como dar corpo a uma cidadania bósnia se as escolhas políticas continuam dependntes da natureza étnica das entidades que comporão o Estado?
Desde 1995, a Bósnia-Herzegovina teve em todas as esferas - locais e centrais - eleições controladas pela Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE). Mas, como as populações "votaram mal", reforçando os partidos nacionalistas que haviam conduzido a guerra, a força militar encarregada de aplicar os acordos, o Ifor (Implementation Force), ao qual cabia retirar-se, permaneceu do local foi rebatizado como força de estabilização (Stabilization Force; SFOR).
Paralelamente, o alto representante da "comunidade internacional" viu seus poderes ampliados: ele não deve mais supervisionar a aplicação de acordos, mas tomar "decisões coercitivas" - verdadeiras leis. Foi assim que ele impôs um cadastramento comum dos veículos, um passaporte único, uma moeda para todos (o marka, indexado ao marco), uma lei sobre a cidadania, uma bandeira... Ele também destituiu responsáveis locais eleitos, como (em março de 1999) o presidente da Republika Srpska,o ultra nacionalista Nikola Poplasen…
Outra "curiosidade": o governador do Banco Central, designado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), não pode ser cidadão bósnio... A reestruturação do setor público, a venda das empresas estatais e a aquisição de fundos de investimentos são agora prerrogativas do Banco Europeus para a reconstrução e desenvolvimento (BERD). Em 1o de janeiro de 2003, uma Missão de Polícia da União Européia (MPUE) substituiu a das Nações Unidas. E, desde 2 de dezembro de 2004, uma força européia de 7 mil homens (Eufor) garante a retirada da Otan, no âmbito da operação Althea. Isto não significa o fim do protetrado, mas sua europeização: se bem que a União Européia arrisque negociar os futuros ASA… com ela mesma! Com questões decisivas: "retirar-se", sim, mas como e em proveito de quem?
Sob a pressão de uma presença estrangeira maciça, a Bósnia originária de Dayton foi proclamada "uma", permanecendo dividida, e a "guerra fria interior" tomou forma de uma guerra de fato. Percebendo os "gestos" autoritários do alto representante como arrogantes, uma parte crescente das populações preferiu votar nos partidos ultranacionalistas, apesar dos favores de candidatos da "comunidade internacional". A exigência dos Estados Unidos de ver o partido de Alija Izetbegovic "purgar" aqueles que reuniam homens julgados como próximos demais com o Irã e extraditar, sem a menor garantia legal, os presumidos "terroristas", suscitou reações do mesmo tipo. Mas, sobretudo, no plano sócio-econômico, a "síndrome da dependência [8]" incrustrou-se, a lógica liberal asfixia o setor público, a presença internacional capta os financiamentos e os três partidos nacionalistas funcionam de maneira clientelista num país que tem 40% de desempregados, onde quase metade da renda é comprometida com a alimentação.
A União Européia tem agora "necessidade" de um Estado unificado bósnio - e portanto de uma nova avaliação da estrutura constitucional herdeira de Dayton - para negociar a europeização dos Bálcãs ocidentais. Mas não haverá consolidação sem transparência sobre o passado e depois sem uma política econômica de coesão e proteção social de todas as populações. Nem uma nem outra estão na ordem do dia.
(Trad. : Fabio de Castro)
[1] Cf. a publicação, em maio e junho de 2005, de trinta e seis conjuntos de notas taquigráficas sobre estes encontros, pelo semanário Feral Tribune (Croácia); a revista Dani (Bósnia); e o comentário de Andrej Nikolaidis na publicação mensal Monitor (Montenegro) de julho 2005.
[2] Cf. "Des mots pour le dire", Le Monde, 14 de janeiro de 1993, reproduzindo em La Déchirure yougoslave. Questions pour l’Europe, L’Harmattan, Paris, 1994. Ler também "La dérive d’une Croatie ’ethniquement pure’", Le Monde diplomatique, agosto de 1992; e "Les incertitudes de la fédération croato-bosniaque", Le Monde diplomatique, junho de 1994.
[3] Cf. Svetlana Broz (neta de Josep Broz Tito), Des gens de bien au temps du mal. Témoignages sur le conflit bosniaque (1921-1995), Lavauzelle, Paris, 2005.
[4] Cf. Lara Nettlefield pesquisadora em Sarajevo da Universidade de Columbia, em relatório apresentado em conferência do Centro de Estudos e Pesquisas Internacionais (CERI), 28 de novembro de 2005.
[5] Cf. La déchirure yougoslave, op. cit., mas também "Mouvante identité des Musulmans", Le Monde diplomatique, outubro de 1995, e Xavier Bougarel, "L’Islam bosniaque, entre identité culturelle et idéologie politique", in Le Nouvel islam balkanique. Les musulmans acteurs du post-communisme 1990-2000, Maisonneuve & Larose, Paris, 2001.
[6] Cf. Sylvie Matton, Srebrenica, un génocide annoncé, Flammarion, Paris, 2005.
[7] É testemunha a reviravolta, em 3 de outubro e sob pressão austríaca, da procuradora Carla Del Ponte, condicionando a abertura de negociações com a Turquia ao início de idêntico processo com a Croácia. O argumento de não colaboração de Zagreb com o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII) subitamente foi derrubado.
[8] Cf. La Bosnie-Herzégovine, enjeux de la transition, sob a direção de Christophe Solioz e Svebor Dizdarevic, L’Harmattan, 2003.