» A desigualdade brasileira posta à mesa
» Fagulhas de esperança na longa noite bolsonarista
» O fim do mundo e o indiscreto racismo das elites
» O milagre da multiplicação de bilhões — para os bancos
» Movimento sindical em tempos de tormenta
» A crucificação de Julian Assange
» An 01 de la gauche, on arrête tout, on réfléchit
» « Il Manifesto », le prix de l'engagement
» Des treillis sous les blouses blanches
» Contourner et désenclaver Anvers
» « La France gesticule… mais ne dit rien »
» Russie, un territoire à géographie variable
» Démographie et richesse en Russie, les grands déséquilibres
» Mutual suspicion in Greece's borderlands
» The British monarchy's smoke and mirrors
» UK Brexiteers' libertarian goal
» Time to reform the Peruvian system
» Russia's attempted return to Africa
» When Algerians took to the streets
Anistias só podem ser concedidas para beneficiar cidadãos ou grupos que atuam fora do âmbito estatal. Governo que indulta a si mesmo já representa um paradoxo inaceitável; manter a auto-absolvição mesmo depois da queda do regime autoritário ultrapassa qualquer padrão de racionalidade
- (04/02/2009)
Em curto prazo, talvez ainda neste ano, as dívidas humanitárias contraídas pela ditadura militar receberão moratória definitiva. Interesses conjugados articulam blindagens políticas e legais para isolar o assunto na segurança das tragédias pretéritas às quais não convém retornar.
O processo de sepultamento dos crimes praticados pelo regime acompanha a obsolescência de instrumentos jurídicos para puni-los, o gradativo desinteresse da sociedade, a morte dos torturadores e a desmobilização das vítimas sobreviventes. Com o passar dos anos, a indefinição e a inércia foram aliadas fundamentais da impunidade; agora resta apenas o último passo rumo ao esquecimento.
Apenas o Supremo Tribunal Federal pode encerrar o assunto. As instâncias intermediárias do Judiciário resistem a tecer interpretações que poderão ser derrubadas no futuro. Mesmo assim, já prevalece entre os juízes o entendimento de que as violências da ditadura prescreveram ou foram absolvidas pela Lei de Anistia e de que inexiste no país legislação suficientemente clara sobre os crimes contra a Humanidade.
O STF não tem pressa de mergulhar numa controvérsia tão espinhosa. Mas o presidente Gilmar Mendes, que trouxe um preocupante viés conservador ao tribunal, dá sinais de que pretende confirmar os efeitos da Lei, em momento politicamente apropriado. E quando isso acontecer, a decisão será irreversível. Não cabe argumentar que órgãos como a Corte Interamericana de Direitos Humanos podem imiscuir-se em decisões da Justiça brasileira, porque não podem. Seus protestos isolados seriam seguidos pelas bravatas orgulhosas dos magistrados locais, e logo outras efemérides ocupariam o noticiário.
Parte da dificuldade em mobilizar a opinião pública advém de interpretações equivocadas sobre as indenizações reparatórias. Além dos questionamentos quanto aos valores concedidos e aos méritos dos benefícios, existe um enganoso consenso de que eventuais sanções retroativas seriam exageradas ou redundantes, gerando uma cadeia viciosa de interdependência entre a reparação dos danos sofridos e a absolvição criminal dos mesmos. As próprias nomenclaturas jurídicas e institucionais que embasam e regulamentam o mecanismo indenizatório remontam aos fundamentos doutrinários da Lei de Anistia.
Torna-se imperativo, portanto, romper a hegemonia dessa excrescência legislativa. Qualquer apego a determinações lavradas nos estertores da ditadura é tolo e tecnicamente insustentável. Anistias só podem ser concedidas para beneficiar cidadãos ou grupos que atuam fora do âmbito estatal. Governo que indulta a si mesmo já representa um paradoxo inaceitável; manter a auto-absolvição mesmo depois da queda do regime autoritário ultrapassa qualquer padrão de racionalidade.
Tortura jamais será “política”. Há décadas o direito internacional considera-a crime hediondo, imprescritível e intolerável, em quaisquer circunstâncias. No Estado democrático de direito não há perdão para torturadores e ponto final.
Entretanto, se os parlamentares, juristas e magistrados do país referendam tais obviedades (em consonância com a própria legislação brasileira), como explicar que os crimes da ditadura permaneçam intocados? Podemos arriscar duas justificativas principais, ambas associadas a certo raciocínio, aparentemente conciliatório, que defende enterrar o passado e “seguir em frente”, sem revanchismos ou agendas retrógradas.
Em primeiro lugar, a tolerância com as barbáries passadas induz à impunidade dos funcionários públicos que continuam a praticá-las. Todas as delegacias brasileiras, dos rincões às metrópoles, escondem alguma forma de tortura; ela é aplicada cotidiana e sistematicamente em cidadãos mantidos sob custódia policial. O beneplácito silencioso das autoridades reflete a ilusão de que a prática é justificável contra determinadas ameaças e necessária para suprir as carências materiais das corporações, fornecendo-lhes um canal punitivo alheio às imprevisíveis deliberações judiciais.
Tamanha ilegalidade (para não citar o abjeto sistema carcerário) exigiria uma ampla e profunda revolução nos paradigmas da segurança pública, algo que demanda recursos, competência e vontade política. Claro, é mais cômodo varrer o assunto para debaixo do tapete da História e fingir que agentes estatais não cometem atrocidades em plena democracia.
Uma segunda frente de resistência à revisão da Lei de Anistia opera na imprensa ligada aos grandes empreendimentos midiáticos. O golpe contra João Goulart e a ditadura que se seguiu foram apoiados pelos maiores grupos informativos da atualidade: as organizações Globo, a futura Folha de São Paulo, o Estado de São Paulo, o Jornal do Brasil, o Correio Braziliense, o Zero Hora, a editora Abril e dezenas de veículos com predomínio regional. Some-se a tantas grifes respeitáveis as manifestações isoladas de colunistas e a participação de lideranças político-partidárias ainda em plena atividade. Revolver o passado não seria positivo para os negócios de muita gente.
Supervalorizar a influência das Forças Armadas sobre os Poderes civis, criminalizar as guerrilhas e humanizar os carrascos são estratégias do jornalismo comprometido com a ditadura para embaralhar o debate e ressuscitar mitologias ameaçadoras que remetam à ruptura institucional de 1964. O mesmo papel desempenha esse apego cínico à absurda Lei de Anistia, como se ela fosse um marco de congraçamento universal a ser preservado em formol.
Apenas uma mobilização popular em grande escala será capaz de reverter esse quadro: atos públicos de repercussão nacional, que demonstrem a atualidade do tema e a força aglutinadora dos grupos envolvidos. As ações (comícios, passeatas, abaixo-assinados) devem ser simultâneas, realizadas em data simbólica, nas maiores capitais do país. Com divulgação maciça, infra-estrutura apropriada e a participação de artistas, políticos e outras celebridades, os eventos ganhariam importância e visibilidade.
A legitimidade das reivindicações seria garantida pelo envolvimento de sindicatos, associações de classe, conselhos profissionais, representações estudantis, sociais e religiosas, além de organismos internacionais ligados aos Direitos Humanos. Os debates inevitáveis obrigariam a imprensa a esgotar essa pauta indigesta, suscitando posicionamentos públicos, denúncias e polêmicas. A pressão popular e o constrangimento midiático obrigariam o STF a deliberar com base no interesse coletivo e na preservação da memória do Judiciário.
O país se aproxima de um momento histórico fundamental para consolidar sua redemocratização, transmitindo às gerações futuras um patrimônio de cidadania, justiça e transparência. O tempo dirá se somos dignos desse privilégio.
Informe-se e ajude a promover a idéia:
Secretaria Especial de Direitos Humanos
Rede de Direitos Humanos e Cultura
Guilherme Scalzilli assina a coluna Mídia & Política no Caderno Brasil. Leia edição anterior:
O vazio
Toda a verborragia da imanência do nada quer disfarçar uma ruína institucional que jornalistas, críticos, curadores e artistas negaram-se a admitir por muito tempo. Não faltam recursos. Falta capacidade aos diretores e conselheiros da Fundação Bienal, imersos em querelas mesquinhas
A moral camaleônica
É delicioso resgatar os argumentos lançados pela mídia em 1997, em favor da reeleição de FHC. Comparados com a grita contra um terceiro mandato de Lula, eles revelam a tendência a adaptar-se às circunstâncias, típica do camaleão. Mesmo que, confirmando sua essência, ele finja ser outro animal...
A alma do negócio
A publicidade não pode espelhar a realidade – e este talvez seja seu grande malefício sócio-cultural. Toda propaganda é enganosa e, quanto mais enganosa, melhor. Não importa que a harmonia doméstica nada tenha a ver com o uso de um creme dental ou com a margarina Qualy