junho 2005
URSS
Com a "reforma" de Gorbatchev, a torrente de palavras não se deteve mais, desfazendo velhos referenciais
Na URSS, não havia nada mais sério que chegar às “palavras”. Os discursos ainda não formavam “mercado”, não haviam passado pelo liquidificador do relativismo pós-moderno, mas, como nas sociedades tradicionais, constituíam uma ordem simbólica onde as convenções, os rituais nada tinham de fortuito. O Politburo, a mais alta instância do país, não chegava ao ponto de debater gravemente o lançamento de um filme, de uma coletânea de poesia, de um romance que fossem suscetíveis de educar o povo ou de desviá-lo da verdade exata? Os “nomenklaturistas”, que ocupavam altos cargos, não estavam à espreita das músicas de um Vladimir Vyssotski ou das rádios ocidentais?
Depois disso, é um equívoco pensar que as “palavras importantes” ditas por Mikhail Gorbatchev desde 1984-1985 eram apenas palavras. Até então, o discurso oficial admitia que o sistema podia passar por “aperfeiçoamentos”. Mas o termo “reforma” continuava sendo um tabu. Quando surgiu a “perestroika”, a polivalência da palavra permite traduções diversas: simples “reestruturação” ou profunda “refacção”? Gorbatchev acrescenta: “De toda a vida econômica, social, cultural”. E a “glasnost”? A etimologia lembra “glas” (a voz) e o verbo “glatit” (tornar público). Então se poderia dizer “publicidade” ou “transparência”.
Mas a História nos ensina que, já no tempo dos czares, “glasnost” tinha o sentido de conceder ao bom povo o direito (limitado) de se expressar. É o que se passa em 1985. Talvez se diga “a permissão de falar”? Porém, progressivamente, a expressão das queixas e das idéias não espera mais permissão. Pode-se, então, traduzir por “tomada da palavra”. E, mais tarde, por “liberdade de expressão”.
No XXVII Congresso do PCUS, em fevereiro-março de 1986, Gorbatchev ousa, finalmente, anunciar uma “reforma radical”. Decidiu-se e assumiu as conseqüências de sua decisão. É o absoluto crime do lesa-ortodoxia. Estimulado, o reformador chegaria a dizer: “revolução”. Então é o chefe do país que anuncia a “revolução”? Parece um sonho. Um jornalista ocidental não poderia senão dar pouca atenção a isso. Mas, para os funcionários soviéticos, era um terremoto. E a população, que aprendeu a decodificar o discurso, começa a compreender: realmente está acontecendo alguma coisa nas altas esferas. A torrente de palavras não se deterá mais, nem sua cascata de afastamentos semânticos, desfazendo os velhos referenciais. Assim, a “esquerda” democrata ieltisiniana se reencarnaria mais tarde na “União das forças de direita”.
(Trad.: Iraci D. Poleti)