março 2006
BIELO-RÚSSIA II
Quinze anos depois da independência, a identidade bielo-russa ainda luta para se consolidar. A maior dificuldade está na influência russa, construída durante o enfrentamento comum contra o nazismo
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A redação da revista Nacha Niva, no centro de Minsk, parece mais uma colméia onde se reúnem todos os atores do movimento nacional bielo-russo. Estudantes assistem um curso noturno da Universidade Popular (proibido pelas autoridades), enquanto voluntários encadernam exemplares da revista: como todos os veículos da mídia independente, o jornal foi excluído do sistema público de distribuição da imprensa. "Dezesseis jornais foram proibidos. Quase todos eram escritos na língua bielo-russa", explica Andreï Dynko, o jovem redator-chefe da revista.
A política de promoção da língua e da identidade nacionais, conduzida após a queda da União Soviética, foi suspensa desde que Alexandre Lukachenko chegou ao poder. Foi ele quem devolveu à língua russa o status de "segundo idioma oficial do Estado", ao lado do bielo-russo [1]. Contudo, esta igualdade é totalmente fictícia. Se algumas inscrições oficiais são bem redigidas em bielo-russo, todas as mídias públicas e órgãos administrativos empregam somente o russo, que domina sem disputa a vida pública e social, ao menos nas grandes cidades.
Além de tudo, Lukachenko, que se expressa usando um russo cheio de nuances do bielo-russo, explicou que somente duas línguas seriam capazes de se adaptar ao mundo contemporâneo: o russo e o inglês.
A situação da Escola Bielo-russa é emblemática desta realidade. Surgido em novembro de 1990, este estabelecimento alternativo teve origem em uma rede de cursos dominicais que começaram a ser oferecidos mais ou menos clandestinamente nos anos 80, permitindo que todos aprendessem ou melhorassem o domínio da língua. Sob direção de Uladzimir Kolas, este sistema paralelo passou a gozar de um renome bastante superior ao número de estudantes inscritos. Sua reputação era tamanha que o Estado convocou os professores a publicar manuais escolares em língua bielo-russa. Dois meses após sua eleição, Lukachenko tomou a decisão de baixar um primeiro decreto para a área da educação. Sem maiores explicações, o presidente queria proibir todos os manuais escolares em bielo-russo publicados após 1991. O poder foi obrigado a recuar sobre esta questão: não havia livros suficientes da época soviética para que fosse possível aplicar efetivamente a arbitrariedade pretendida.
Apesar das várias manifestações dos professores, pais e estudantes das escolas, sustentados por um grande número de intelectuais bielo-russos, a instituição foi fechada em junho de 2003. "Amargamos de seis meses a dois anos de prisão por participação em uma associação não registrada. Mas decidimos persistir nesta aventura", explica um responsável pelo colégio. Sem local para funcionar, a escola viveu dois anos letivos difíceis: os cursos aconteciam em apartamentos privados, discretamente transformados em salas de aula improvisadas. Este ano, a escola aluga uma pequena casa na periferia, bem distante do centro de Minsk. Professores e estudantes têm de enfrentar horas de trajeto para chegar escola. Apesar das dificuldades, "estamos aqui para estudar na nossa língua", explica um aluno.
Quinze anos depois da independência, a identidade bielo-russa ainda tem dificuldades para se afirmar. Localizado na encruzilhada dos Impérios, o território bielo-russo pertenceu, durante a Idade Média, ao Grande Ducado da Lituânia; e depois à "Rzeczpospolita", república nobiliárquica lituano-polonesa formada no século XVI. O império dos czares pôs as mãos sobre a Bielo-Rússia, graças às três divisões do território da Polônia, em 1772, 1792 e 1795. O país passou, então, a sofrer uma intensa russificação.
No fim do século XIX, nasceu um movimento nacional bielo-russo. Essencialmente cultural, ele se inseriu no quadro dos nacionalismos românticos europeus. Durante a I Guerra Mundial e a guerra civil russa, a Bielo-Rússia foi um campo de batalha que não conseguia ser afirmar como um ator autônomo, apesar da breve experiência como República Popular Bielo-russa Independente, em 1918-1919. O Tratado de Riga (1922) dividiu a Bielo-Rússia entre a Polônia e a URSS. Após o pacto germano-soviético de 1939, a URSS recuperou a Bielo-Rússia ocidental, antes que o país sofresse a invasão alemã, em 1941.
Em 1945, a Republica Socialista Soviética da Bielo-Rússia era um país devastado, com a infra-estrutura e cidades destruídas. Um elemento essencial da sociedade havia sofrido particularmente: a população judia, largamente majoritária antes da guerra na maioria das cidades, como Minsk, Grodno ou Vitebsk, a cidade natal do pintor Marc Chagall. As terras bielo-russas encontravam-se na "zona de residência" onde o império czarista tolerava a presença judia. Com a quase desaparição da população judia, perdeu-se também boa parte da história a da cultura nacional.
De 1945 a 1990, a Bielo-Rússia conheceu um desenvolvimento econômico rápido e uma intensa industrialização. A russificação se deu sem que os dirigentes comunistas locais tentassem resistir a este fenômeno, enquanto a sovietização das cidades e do campo acabava de destruir a paisagem tradicional. A língua e a cultura bielo-russas, oficialmente protegidas, estavam, na verdade, confinadas em um espaço puramente folclórico.
Os movimentos dissidentes que apareceram nos anos 80, sobretudo após a catástrofe nuclear de Tchernobyl (1986), da qual a Bielo-Rússia foi a primeira vítima [2], utilizavam de bom grado as referências nacionalistas bielo-russas, notadamente por se distinguir da Rússia e re-vincular a identidade do país a um espaço centro-europeu. Esta redescoberta de identidade foi valorizada nos primeiros anos da independência, mas uma parte importante da opinião pública não aderia a este projeto nacional, considerado incerto demais. A chegada de Lukachenko acabou de quebrar o movimento.
Na verdade, o presidente cultiva mais uma nostalgia da época soviética do que o nacionalismo russo. "Lukachenko quer se apresentar como uma alternativa a Putin. Sonha em ser o chefe de um novo grande Estado que reúna dois países. O objetivo não é que a Bielo-Rússia seja reduzida à posição de simples província russa. O projeto de união com a Rússia deve ser compreendido dessa maneira", explica Liolik Uchkine, cronista da Nacha Niva. Nestes últimos anos, o discurso do poder sofreu uma nítida inclinação. A união política com a Rússia parecendo impossível, as autoridades valorizaram a experiência do Estado Bielo-russo e a posição específica do país que não seria "nem a oeste, nem a leste". Diversas novelas de televisão se dedicaram a retratar a Idade Média.
A nostalgia soviética abriga, entretanto, a principal força ideológica do regime. Ela se enraíza na experiência maior que representa a II Guerra Mundial e o combate de partisans bielo-russos que coordenavam a resistência nas zonas ocupadas. Este tema tem um eco real no país, onde os veteranos de batalha são ainda numerosos e também onde as referências de identidade bielo-russas são pouco enraizadas. Por exemplo, não existe igreja ortodoxa bielo-russa independente e o arcebispo Filaret de Minsk, antigo deputado no Soviete Supremo da URSS, permanece fiel ao patriarcado de Moscou, assim como o regime de Loukachenko.
Contudo, Andreï Dynko retoma com esperança o exemplo do país vizinho, a Ucrânia. "Há dez anos, ninguém falava ucraniano nas ruas de Kiev, que hoje é uma cidade predominantemente ucranofônica, graças a uma política específica de promoção da identidade nacional." Para ele, a Ucrânia e a Bielo-Rússia são nações ainda imaturas, e a construção nacional caminha junto da democratização. "A ’revolução laranja’ do outono de 2004 foi uma revolução nacional que permitiu à Ucrânia refundar sua identidade. O regime de Lukachenko representa, talvez, a chance histórica para Bielo-Rússia, que conseguirá se constituir como nação por meio da oposição a tal regime de mentiras e do vazio da ideologia do estado".
(Trad.: Sílvia Pedrosa)
[1] Segundo o recenseamento oficial de 1999, apenas 11,4 % da população é de origem russa (http://belstat.gov.by/homep/en/cens...), mas em geral a população domina a língua russa.
[2] Ver o mapa http://www.lib.utexas.edu/maps/comm... chornobyl_radiation96.jpg.