fevereiro 2002
ARGENTINA
Vargas Llosa é o único a conseguir a façanha de escrever um texto longo sobre a Argentina sem mencionar, uma só vez, o FMI, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio, e muito menos, é claro, o governo norte-americano
Como a Argentina – que, na década de 40, tinha um dos níveis de vida mais elevados do mundo – pôde chegar à situação atual? Numa das inúmeras crônicas que publica no jornal espanhol El País, o escritor (e ex-candidato à presidência do Peru) Mario Vargas Llosa apresenta sua explicação: “A verdadeira razão é (...) intimista, difusa, e tem mais a ver com uma determinada predisposição do espírito e da psicologia do que com doutrinas econômicas ou lutas pelo poder1 .”
Dentre as centenas, e até milhares, de artigos, comentários, notas e análises publicados a respeito da crise argentina, Vargas Llosa parece ser o único a conseguir a façanha de escrever um texto longo sem mencionar, uma só vez, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio e, ainda menos, é claro, o governo norte-americano, na gênese, maturação e desfecho do problema argentino. Da mesma maneira, no dicionário “varguista”, são proibidos termos como globalização, privatizações maciças, desmantelamento do setor público, presença crescente dos acionistas e do capital financeiro na evolução das economias dependentes.
Para sustentar semelhante vontade de evasão, só lhe resta apelar para Jorge Luis Borges, esse bom Borges, capaz de prestar serviços post mortem graças à magia de Vargas Llosa. A Argentina, segundo ele, escapa de todos os “ismos”, com exceção de um. A Argentina é “borgista” e é esta a origem de seus males e a chave de seus mistérios. “Não é mero acaso o fato de o mais notável dos criadores evadidos do mundo real da literatura moderna ter nascido e ter escrito na Argentina, país que manifesta, há décadas, não só na vida literária, mas também na vida social, econômica e política, assim como Borges, uma notória preferência pela irrealidade e uma rejeição cheia de desprezo pela sordidez e mesquinharia do mundo real, da vida possível.”
Quem não tiver compreendido essa genial descoberta, ignora, então, a obscura lógica dos avestruzes que, como os argentinos – dixit Vargas – escondem a cabeça na areia quando chega o furacão. É uma abordagem ainda mais curiosa na medida em que, tratando-se de outros projetos ou situações políticas, tais como a revolução cubana ou sandinista, ou a de Hugo Chávez, na Venezuela, ou de Chiapas, ou de qualquer outro movimento que contesta os dogmas e liturgias da globalização, nosso ilustre pesquisador de fontes oníricas não encontra, nem procura encontrar “as motivações intimistas e difusas”, nem as “predisposições do espírito e da psicologia”, nem a herança explicativa de célebres romancistas desaparecidos. Nesses casos, encontra apenas a oportunidade de exercer seus anátemas contra as ideologias coletivistas, contra os resquícios marxistas e de outras demagogias revolucionárias.
(Trad.: Regina Salgado Campos)
1 - “Por qué? Cómo?”, El País, Madri, 7 de janeiro de 2002.