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Após um acidente de trem da companhia ferroviária Ouest-Etat, então recém-nacionalizada, diretor do jornal ’L’Humanité’, escreveu este artigo, em 19 de fevereiro de 19111 , que parecia antecipar o que viria quase um século depois
- (01/06/2004)
E eis que, brandindo os acidentes da Ouest-Etat, toda a imprensa capitalista se precipita contra os serviços públicos. Todos os especuladores, todos os aproveitadores, todos aqueles que, após terem roubado magníficas riquezas à nação, queriam especular, monopolizar e roubar mais, todos aqueles que estão de olho, à espera de novas concessões, no minério de Ouenza, no carvão e no minério de Meurthe-et-Moselle, no ouro de múltiplas jazidas, todos aqueles que querem, sem que sejam perturbados em sua especulação, captar a energia hidráulica, geradora de luz e de movimento. Todos eles, organizados numa tropa, queriam persuadir a França de que o Estado democrático nunca será capaz de administrar uma indústria e de que devem ser deixadas por conta das empresas privilegiadas as riquezas que elas próprias já usurparam e que lhes devem ser entregues todas as novas riquezas.
Será o povo operário e camponês enrolado por essas manobras? Será que ele se deixará enganar e esfolar uma vez mais? Será que, justamente quando se acelera a política de nacionalização e municipalização no mundo inteiro, a França proclamará sua incompetência, sua inépcia, e consagrará as pretensões de um feudalismo que a sangra e subjuga? Quem compactuasse, direta ou indiretamente, com essa manobra dos capitalistas, estaria cometendo um autêntico crime.
Ah! Que se denunciem os erros da Ouest-Etat; que se procure a causa; que se lance uma luz implacável sobre todas as responsabilidades; que se reabra o processo da antiga empresa que criou deliberadamente uma situação intolerável e que se revelem os erros da burocracia que sem dúvida construiu, depressa demais, um novo regime sobre uma base podre; que se questionem aqueles que, para agradar à empresa ou por uma indesculpável negligência, não fizeram proceder ao exame rigoroso da estrada de ferro e do material, ao inventário preciso que teria permitido, de acordo com as cláusulas financeiras da compra, diminuir as pretensões abusivas dos acionistas e teria constituído, para o novo regime, uma advertência de prudência; que seja posto um fim à discórdia, à desconfiança recíproca entre o pessoal da antiga empresa e o da rede adquirida; que se organize – por meio de uma participação mais efetiva do pessoal empregado, do Parlamento, do próprio público, representado por seus delegados eleitos para esse fim, e pelos membros das grandes associações comerciais, industriais e sindicais – um controle mais eficaz; que não se tenha medo de agir rapidamente, seja qual for o custo do esforço financeiro necessário, para se obter o bom funcionamento da rede. Sim, mas que não se permita a uma oligarquia ávida em explorar as recentes catástrofes, pelas quais é, em grande parte, responsável, que aumente ainda mais seu domínio feudal às custas de toda a população. E, também, que nunca os socialistas dêem à necessária crítica do Estado burguês – que, aliás, depende de nós para ser cada dia menos burguês – uma forma tal que faça o monopólio do capital se sentir regozijado e fortalecido.
Os ferroviários acertaram quando, há poucos dias, em seu congresso sindical e denunciando a intriga reacionária, não só reivindicaram que a rede Ouest-Etat fosse mantida, mas também que a totalidade das redes ferroviárias fosse nacionalizada. Para toda a classe operária, há um interesse vital em que serviços públicos democraticamente administrados ocupem o lugar dos monopólios capitalistas e que funcionem com um padrão de excelência, com a participação e a dedicação de todos.
Primeiramente, os trabalhadores podem conquistar, dessa maneira, mais garantias. Numa democracia, o Estado, por mais burguês que ainda seja, não pode desconhecer os direitos e os interesses dos assalariados de modo tão pleno e cínico quanto os monopólios privados. A antiga Ouest-Etat antecipara-se a todas as demais empresas ao implantar reformas que favoreciam os trabalhadores; e agora, com a rede adquirida, a reintegração dos ferroviários está praticamente concluída, enquanto as empresas, ridicularizando o poder, o Parlamento e a consciência pública, respondem a qualquer pedido de reintegração com o mais despótico e injurioso indeferimento. Aliás, neste mesmo momento, o Estado prepara para os servidores públicos um regime salarial melhor do que o das empresas privadas. Mas isso não é tudo; e o Parlamento tem interesse, para a transformação da sociedade capitalista em sociedade socialista, em que os grandes serviços públicos, administrados segundo regras democráticas e com uma ampla participação da classe operária na sua direção e controle, funcionem de maneira precisa e vigorosa. Não é indiferente que se possa provar que enormes complexos industriais podem funcionar sem o controle dos magnatas do capital. Por mais longe que estejam do que virá a ser a organização coletivista, os serviços estão mais perto desse objetivo, num país de democracia e organização operária, do que os monopólios privados. Eles são uma primeira forma de organização coletiva. Pressupõem – em cada um dos que dele participam e que devem coordenar seus esforços sem a disciplina brutal de antigamente – aquele senso de responsabilidade e preocupação com a obra comum sem os quais o mecanismo coletivista falharia.
Os serviços públicos democratizados podem e devem ter um efeito triplo: diminuir a força do capitalismo, dar ao proletariado mais garantias e uma força mais direta de reivindicação e desenvolver nele, para compensar as garantias conquistadas, o zelo pelo bem público, que é uma forma básica da moralidade socialista e a própria condição necessária para o despertar de uma nova ordem.
Que os proletários defendam portanto, com todas as suas forças, os serviços públicos contra as campanhas sistemáticas da imprensa burguesa e contra as decepções que produz, junto à própria classe operária, uma primeira experiência, desastrada e arrogantemente burocrática, do regime da nacionalização.
Que eles não entreguem o Estado às oligarquias, mas que se esforcem, ao estender o domínio do Estado, por ampliar sua ação dentro do Estado e sobre o Estado, por meio do desenvolvimento de sua organização sindical e de sua força política.
Eis aí um elemento necessário da política de ação de ampla e profunda “realização” que o Partido Socialista deverá propor à democracia francesa à medida que o radicalismo decomposto manifestar sua impotência essencial.
(Trad.: Jô Amado)
1 - Trecho do livro Un siècle d’Humanité – 1904-2004, org. Roland Leroy, ed. Le Cherche Midi, Paris, 2004.