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Numa Europa de solidariedades, o ingresso das repúblicas balcânicas poderia curar feridas da guerra recente e ampliar direitos sociais. Mantidas as políticas européias atuais, o processo de adesão tende a ser traumático
- (01/01/2006)
Entre a União Européia e os Estados da ex-Federação Iugoslava, as grandes manobras começam. Não sem dificuldade, por sinal. As negociações para a adesão à UE tinham sido bloqueadas na Croácia, à qual a procuradora Carla del Ponte reprovava a recusa de cooperar com o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TIPIY). Mas a tristeza foi enterrada em 5 de outubro de 2005 para permitir a abertura de negociações com... a Turquia. A Macedônia também adquiriu o estatuto de "candidata" - a abertura das negociações seria confirmada em dezembro. Bruxelas prepara, com a Sérvia-Montenegro, um acordo de estabilização e associação (ASA), que daria a Belgrado um estatuto de "candidata potencial". Este mesmo "estatuto" foi recusado até o começo de outubro à Bósnia-Herzegovina, por "não-conformidade" da polícia da República Srpska - até que o "argumento" foi abandonado para fazer esta ùltima aceitar a renegociação da Constituição saída, há dez anos, do compromisso de Dayton. Por trás de toda essa agitação, o que está em jogo, de verdade?
"O paradoxo da situação nos Bálcãs pós-iugoslavos é que os países que teriam mais necessidade da integração européia para administrar sua multiplicidade de etnias são precisamente aqueles menos prontos para essa integração", constata o pesquisador Jacques Rupnik: "essencialmente porque se trata de Estados em decomposição, que não conseguem mais conter a violência organizada em uma parte do seu território e a desestabilização de seus vizinhos" [1]. De fato, todas as antigas repúblicas iugoslavas têm agora um estatuto de (quase) protetorado, regido por textos de natureza constitucional que os colocam - exceto a Eslovênia e a Croácia - sob o controle das grandes potências [2].
Quando se questionou a propriedade social auto-gerida, a questão do Estado - paradoxalmente para os liberais - tornou-se central: que Estado, em que território, iria apropriar-se das divisas e do comércio exterior? Acima de tudo, como ganhar o apoio das populações ciosas de seus direitos sociais? As correntes não-nacionalistas liberais, que apoiavam o último primeiro-ministro iugoslavo Ante Markovid, em 1989, queriam que o questionamento do antigo sistema, em favor da competição de mercado e das privatizações se fizesse em escala federal. Este ponto de vista foi sustentado até 1991, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e grandes potências, hostis ao desmembramento da federação - Alemanha e Vaticano à parte. Mas para os poderes das repúblicas dominantes na Eslovênia, Croácia, e de modo diferente, na Sérvia, o que estava na ordem do dia era despedaçar a Federação. A consolidação de seus Estados vinha antes das privatizações, para que estas se realizassem com vantagem para essas repúblicas.
A Eslovênia já preparava sua moeda antes de deixar, em 1991, o barco que afundava. É certo que, contrariamente às outras repúblicas, não abrigava minorias nacionais fortes. Mas isto não é suficiente para ter um Estado próspero... A Eslovênia foi, de todos os países que se proclamavam socialistas, o que menos aplicou os preceitos liberais ao longo dos anos 1990 [3]: as resistências sociais e políticas às privatizações foram proporcionais às conquistas do antigo sistema - nível de vida elevado, 2% de desempregados no fim dos anos 1980 (contra 20% no Kosovo, por exemplo). E o Estado esloveno não tentou reduzir os salários nem os impostos sobre o capital para atrair os capitais estrangeiros ao longo da década de 1990, a despeito das pressões da Comissão Européia...
Todas as outras repúblicas eram, assim como a Iugoslávia, multinacionais - e menos desenvolvidas. A gestão burocrática do sistema havia engendrado desperdícios e encorajado o "cada um por si", o que aprofundou as disparidades entre os níveis de vida. A paralisia e depois a divisão da Federação confrontaram em toda parte as comunidades minoritárias às políticas estatais impostas pela "nação" que dominava localmente, a qual procurava consolidar - e se possível, aumentar -"seu" território [4] e sua legitimação em bases nacionalistas, em prejuízo das proteções solidárias. Pior: na virada dos anos 1990, as modificações das Constituições - na Sérvia, Croácia e Macedônia - trouxeram retrocessos para a situação das comunidades minoritárias. E foi por isso que se boicotaram aquelas revisões constitucionais.
Diante das declarações de independência, as grandes potências procuraram "conter" o incêndio na base de um único critério (apresentado como "princípio"): a manutenção a qualquer preço das fronteiras das repúblicas, uma vez reconhecida a dissolução da Federação como parte integrante do direito à autodeterminação... Implantada a pedido da Comunidade Européia, a comissão presidida pelo jurista Robert Badinter emitiu uma opinião favorável ao reconhecimento da independência da Eslovênia e da Macedônia (onde os partidos albaneses estavam associados ao poder). Essa comissão, por outro lado, adotou a prudência diante dos conflitos existentes na Croácia e na Bósnia-Herzegovina. É verdade que o direito internacional não dispunha de um "modelo" que respondesse aos problemas colocados. A associação de todas as comunidades envolvidas deveria ter prevalecido para um tratamento sistemático e igual das questões nacionais... Nada disso aconteceu.
Foi assim que se levou a Bósnia a organizar um referendo de independência, na esperança de que este último evitasse a guerra. Mas o referendo foi boicotado maciçamente pelos sérvios - não pelos croatas. Zagreb optou por não anunciar publicamente sua vontade de construir um Estado separado: a Herceg-Bosna, simétrica da Republika Srpska... E as potências européias, assim como os Estados Unidos, fecharam os olhos quando a Croácia reduziu a população sérvia a menos de 5% durante o verão de 1995. Uns e outros puseram em prática, caso a caso, os "princípios" - evolutivos - da Realpolitik. Tratava-se de "conter" as explosões (por meio dos "planos de paz ", evitando envolver-se nos conflitos) e apoiar-se nos Estados fortes da região (como em Dayton), procurando fazer progredir os objetivos geoestratégicos do momento: uma política de bombeiro piromaníaco...
Quando a Alemanha decidiu reconhecer a independência da Croácia e da Sérvia, a União Européia comportou-se como grande potência à procura de "política externa comum": alinhou-se, em janeiro de 1992, à opção alemã. Os Estados Unidos, de início, ficaram à parte, alegrando-se com as dificuldades da Europa e da ONU. Exploraram em seguida a crise na Bósnia, depois no Kosovo, para garantir a redefinição e a ampliação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) depois da dissolução do Pacto de Varsóvia em 1991 - sem com isso se envolver diretamente nos conflitos. A proteção das populações, o respeito aos povos e seus direitos eram a última de suas preocupações.
Na conferência de Rambouillet, em fevereiro de 1999, Belgrado apoiava os planos europeus de autonomia do Kosovo, contestados pelos independentistas albaneses. Inversamente, os sérvios recusavam a presença da OTAN no território, desejada pelos albaneses [5]. Em vez de reconhecer o fracasso da primeira fase de sua "mesa redonda", que não havia permitido um verdadeiro encontro entre albaneses e sérvios, os governos europeus concentraram-se na política "reforçada" da secretária de Estado americana Madeleine Albright, que visava o Exército de Libertação do Kosovo (ELK). Depois de três meses de guerra, a resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU estabeleceu o cessar-fogo. Mas como os acordos de Dayton, ela possuía contradições que persistem até agora: a Aliança Atlântica preservou sua unidade (apesar de fragilizada, como a etapa seguinte no Iraque irá mostrar). Os Estados Unidos conseguiram implantar uma vasta base militar em Bondsteel (denunciada hoje como o Guantânamo local). Mas o Kosovo, longe de se tornar independente, estava ao mesmo tempo sob protetorado e era província iugoslava.
Seis anos mais tarde, Washington conseguiu o que Slobodan Milosevic lhe havia recusado: o presidente Vuk Draskovic assinou, em 18 de julho passado, um acordo abrindo o país para as tropas da OTAN "até o fim de todas as operações de apoio à paz na região dos Bálcãs, a menos que as partes decidam de outra forma [6]. Contudo, Belgrado - ao contrário dos albaneses do Kosovo - pode também, até agora, alegar uma resolução que mantém o Kosovo dentro da última federação entre a Sérvia e Montenegro... E para preservar estas fronteiras tirando o capacete da OTAN para pôr o da União Européia, o comissário europeu Javier Solana fez com que Montenegro continuasse dentro da Iugoslávia dirigida por Kostunica depois da derrota de Milosevic em dezembro de 2000. Batizado de "Solânia" pelos sérvios, o compromisso é inócuo para manter - provisoriamente - um estado Sérvia-Montenegro no qual Belgrado reafirmava o Kosovo como "província sérvia". Nada resolveu: este status continua mais do que nunca inaceitável para os albaneses - o que em troca não legitima sua apropriação da província às custas dos não-albaneses.
Na realidade, tanto no Kosovo quanto na Bósnia, as instituições militares e civis do protetorado se misturam, pela necessidade de favorecer-se o "viver juntos" multi-étnico e portanto a responsabilidade das populações. Temendo um efeito dominó, os ocidentais generalizaram o sistema dos protetorados, acrescido de um tratamento heterogêneo dos direitos.
Por isso, a Macedônia é o único Estado onde, em virtude da modificação da Constituição de 1991, seguida dos acordos de Ohrid de 2001, um princípio de dupla maioria - cidadã na escala do país e nacional para as comunidades, independentemente de seu número e localização espacial - permite aos albaneses bloquear as medidas que julguem ameaçadoras [7]. Uma presença maior dos albaneses em instituições como a polícia, a gestão mista das administrações locais e promoção dos albaneses, notadamente na Universidade de Tetovo, favoreceram um clima de pacificação. Ainda é preciso encontrar trabalho, em sua própria língua ou em outra... Como todas as sociedades confrontadas com as políticas neoliberais, a Macedônia experimenta uma crise social cada vez mais séria e uma grande separação entre as populações e sua representação política. Ali reside a fraqueza dos acordos de Ohrid, a despeito de suas conquistas. A Macedônia segue, neste plano, a regra geral. Combinada com a procura de vínculos confederais ou federais entre vizinhos, a relativização das fronteiras graças ao aumento dos direitos sociais e nacionais no interior de cada Estado foi, nos Bálcãs, uma orientação alternativa - avançada no passado, e ainda atual [8]. Uma política da União Européia baseada nesses princípios poderia favorecê-la. Mas a atual, que impõe cortes de orçamentos no próprio momento de ampliação do bloco é, ao contrário, explosiva.
(Trad.: Elisabete de Almeida)
[1] Cf. "L’Europe centrale et les Balkans à la recherche d’un substitut d’empire", in Kant et Kosovo, Etudes offertes à Pierre Hassner, sob a direção de Anne-Marue Le Gloannec e Aleksander Smolar, Presses de Sciences Po, Paris, 2003.
[2] Só o Kosovo é declaradamente um protetorado. Mas textos ou acordos de caráter constitucional redigidos e aplicados sob controle ocidental direto regem a Bósnia (acordos de Dayton, 1995), a Macedônia (acordo de Ohrid, 2001) e a Sérvia-Montenegro (Carta Constitucional de 2003). Tropas estrangeiras estão presentes em todos esses territórios e tendem a se europeizar.
[3] Cf. Jean-Pierre Pagé, Julien Verceuil, De la chute du Mur à la nouvelle Europe, L’Harmattan, Paris, 2004 ; e, sobre a abordagem comparativa de Estados, propriedade, relações sociais na transição iugoslava, ler Revue d’études comparatives Est/Ouest n°s 1-2, volume 35, Paris, março-junho de 2004, pp. 117-156.
[4] Cf. Yann Richard et André-Louis Sanguin, L’Europe de l’Est quinze ans après la chute du Mur - des pays baltes à l’ex-Yougoslavie, L’Harmattan, Paris, 2004, segunda parte: "Les pays de l’ex-Yougoslavie entre incertitudes et recompositions", pp. 239-325.
[5] Cf. Kosovo: établir les faits, Joël Hubrecht, Edition Esprit, Paris, 2001.
[6] Cf. Balkan Info, n° 102, Paris, setembro de 2005, p.10.
[7] Este sistema decorre da supressão da referência aos Eslavo-Macedônios como único povo fundador do país.
[8] É preciso ler sobre este assunto o número especial da revista Revolutionary History, "The Balkan socialist tradition", vol. 8 n° 3, 2004, coordenada e apresentada de modo empolgante por Andreja Zivkovic e Dragan Plavsic, Porcupine Press, Londres. Cf. Também "Explosion ou confédération", Le Monde diplomatique, maio de 1999.