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Assim Assis Brasil se mostrou em seu romance: mantendo um ritmo sensatamente emocionante do começo ao fim, com a honesta prioridade não de impactar, mas de ser fiel ao texto, ao tom de narração escolhido.
- (15/12/2007)
Em uma de minhas recentes descobertas tardias, percebi que todo começo de livro deixa o leitor apreensivo, como se aquele objeto fosse uma ameaça e exigisse que a pessoa esteja em permanente posição de defesa. Com Música perdida (L&PM Editores), de Luiz Antonio de Assis Brasil, aprendi que é preciso ter mais paciência na leitura do que eu imaginava.
Comecei a ler com inúmeras dúvidas e descrenças, fazendo daquele livro um estranho cuja única intenção era me cegar. É realmente necessário se livrar de certos costumes e pré-julgamentos ao iniciar uma leitura. Não sei se me deixei levar pelo ar sombrio que sobrevoa a literatura brasileira, pois confesso ter ido pronta para o ataque. Minha pré-reação durou apenas uma página, tempo suficiente para que eu admitisse ter em mãos um grande livro, que se tornaria muito importante para mim.
O cuidado e a delicadeza com os quais o autor tratou a morte, o luto negado, o susto e o terror que vive dentro das pessoas estão presentes em cada linha, na medida de uma música em plenitude. O recurso de frases curtas, com a intenção única de dar um certo efeito ao texto, nunca me agradou, mas reconheço que, para fugir de um impacto não calculado, o escritor deve ter uma lucidez muito maior do texto. E assim Assis Brasil se mostrou em seu romance: mantendo um ritmo sensatamente emocionante do começo ao fim, com a honesta prioridade não de impactar (o que pode ser uma conseqüência e não um propósito), mas de ser fiel ao texto, ao tom de narração escolhido.
Música perdida, longe de ser uma biografia, como o próprio autor já disse, trata dos momentos vividos — com a exceção de alguns detalhes que poderiam ter eliminado a literatura do livro, se assim posso dizer — pelo maestro Joaquim José Mendanha (autor do hino rio-grandense), os quais, dentro da ficção, o fizeram entender o que é ser um verdadeiro músico, um artista completo, e que nada teria sentido enquanto ele não aceitasse quem era e o que sua música fazia, levando o tempo que precisasse.
O pai de Quincazé — apelido do maestro quando jovem —, também músico, descobriu que o garoto tinha ouvido absoluto (característica daquele que consegue identificar uma nota musical isolada, algo muito raro) e decidiu que seu filho deveria se dedicar ao estudo da música. Após alguns anos e o jovem Mendanha vai para Vila Rica, Minas Gerais, e conhece Bento Arruda Bulcão, que se transforma em seu primeiro mestre. Com ele, Quincazé aprende acima de tudo o lado romântico da composição, aquele que não exige que o compositor anote, mas que conheça a música para sabê-la — o que diz muito sobre a vida:
No momento em que se anota a música, ela perde o seu drama. Mesmo que o compositor escreva todas as indicações [...], nunca será como ele pensou e como ele sentiu. [...] São apenas palavras. E o que são palavras? (página 36)
A convivência com o jovem fez renascer em Bento Arruda Bulcão uma paixão pela vida, a ansiedade para que ela continue e não pare. Na minha opinião, é o melhor personagem do livro. Seu desenvolvimento faz com que o leitor esteja ao seu lado o tempo todo, vendo seu sofrimento por tudo o que perdeu, pelo que não pôde realizar, acompanhando os estouros de felicidade e uma rara satisfação de ter Mendanha como aluno.
Decidido de uma forma completamente altruísta (do verdadeiro amor que concede a liberdade, do corte violento e necessário), Bento encaminha Quincazé para o Rio de Janeiro, onde teria melhor educação musical com o Padre-Mestre José Maurício Nunes Garcia. Chegando ao Rio, Mendanha aprende sobre música e vida, mas de forma contrária à que Bulcão havia lhe passado. Encantado com as novidades do aprendizado e as possibilidades da nova cidade, o protagonista corta aos poucos o contato com seu primeiro professor, deixando-o num passado quase sem significado — um possível desvio dessa personalidade ainda em formação. Na cidade também consegue trabalhos, passa a considerar Nunes Garcia seu grande mestre e conhece sua futura esposa, Pilar — aquela que lhe dará força até nos momentos em que tudo parece acabar, inclusive quando Mendanha não vê a arte existir mais.
É muito fácil, na juventude, lidar com o dom que se possui, pois nada além dele é exigido. A maturidade faz com que se conviva com esse dom, o que muitas vezes implica na desistência dele por inaceitação dos que rodeiam a pessoa e, conseqüentemente, dela própria. Quincazé, em Música perdida, foi feito por influências. A crença única em seu talento anula a confiança em si a partir de si. O que ele é não o faz músico, mas é o que os outros querem — principalmente seu novo professor, o Padre-Mestre — que ele toma como garantia. Sua música é feita por indicações de certo e errado, sempre ditas por outras pessoas, inicialmente e de forma mais pura por Bento Arruda Bulcão.
Aos 40 anos, Mendanha compõe uma cantata, o auge de todo o seu estudo, a composição que confirmaria a grandeza de seu talento. O Padre-Mestre aprova implicitamente a cantata, mas considera um ato de soberba um músico brasileiro querer apresentar uma composição como aquela. Por isso, Mendanha decide fazer uma nova versão, de acordo com o que Nunes Garcia considera aceitável para os ouvidos do país. Isso não o impede, no entanto, de futuramente tocar a composição para um grupo de franceses, que ficam maravilhados com a exímia capacidade do músico e se propõem a enviar a partitura da cantata a Rossini. Mendanha cede aos elogios e, a partir daquele momento, se despede, sem saber, de seu auge na música.
Inicia-se então a negação do maestro pela vida, sob a tortura de uma procura que ele sabia jamais terminar. O satisfatório da vida é que quase sempre estamos errados e ainda temos direito à redenção (inclusive da culpa, inexistente no caso de Mendanha). Uma redenção que pode surgir quando uma orquestra se aquieta, tamanha a perfeição com que se executou uma música, quando a ausência de aplausos indica o intocável da arte.
Durante o livro inteiro, todos, de alguma forma, estão em seus limites. Todos se encerram, em nome da harmonia, para que Mendanha reapareça para si. Música perdida é, assim como a composição de seu protagonista, uma cantata a anunciar seu estado natural de vida: o imortal.