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No fundo, “Flores azuis” é a jornada de Marcos em busca da compreensão de si mesmo. As cartas misteriosas são uma espécie de catalisador para a sua transformação pessoal
- (05/12/2008)
“A escrita é cheia de mal-entendidos, como a fala”, comenta alguém em Flores azuis, de Carola Saavedra (Editora Cia das Letras). “Não como o olhar, que é sempre revelador, nada mais revelador que o olhar [...].” Essas frases, na verdade, estão numa carta, e são fundamentais para a compreensão desse romance – ao lidar com as possibilidades da palavra escrita e seus enganos. No fundo, essa é uma história de erros – não uma comédia, mas, ainda assim, uma narrativa que se acumula com pequenos enganos, nem sempre perceptíveis ao leitor, e menos ainda aos personagens.
Autora de um romance, Toda terça, e de uma coletânea de contos, Do lado de fora, em seu novo trabalho Carola Saavedra confirma que as maiores qualidades de seu primeiro romance não foram mero acaso, mas fruto do trabalho de uma escritora consciente e talentosa, que sabe que uma prosa esmerada é tão importante quanto a trama e o desenvolvimento dos personagens. Afinal, de que vale um livro carregado de linguagem poética sem uma narrativa convincente ou povoado por clichês?
Carola Saavedra se interessa pelo espaço físico que pode unir personagens em tempos distintos e em apropriações indébitas. Em Toda terça, uma personagem vaga pelo apartamento que não é seu, e a vida de outra é usurpada. Já em Flores azuis, Marcos muda para um apartamento depois de seu divórcio. Ainda não se acomodou, não se sente dono, nem abriu as caixas da mudança, e começa a receber cartas de uma mulher que assina apenas com “A” e não inclui remetente. A correspondência é endereçada ao antigo morador. Mas algo faz com que abra os envelopes e passe a ler sobre a vida dessas duas pessoas – a remetente e o destinatário. Novamente, vidas são roubadas sem que seus verdadeiros donos saibam.
“Ao acabar de ler a carta, guardou-a novamente no envelope e deixou em cima da mesa, ficou por algum tempo em silêncio, sentindo-se estranho, incomodado”, descreve o narrador após Marcos ler a primeira correspondência. Se, no começo, ele o faz tentando alguma pista de quem possa ser o destinatário real, aos poucos essas cartas se tornam o significado de sua vida. Ele deixa de lado emprego, namorada, filha e outras funções sociais para viver a espera da mensagem.
O que há de tão interessante nessas cartas? A desintegração de um caso de amor. ‘A’ escreve para o homem que ama e perdeu. Ela relembra o dia-a-dia juntos e os fatos que culminaram na separação. É uma história de amor tão lírica quanto comovente, mas, ao mesmo tempo, são mensagens de uma mulher desesperada tentando achar um sentido na separação com a qual não concorda. ‘A’ é uma pessoa que se entrega, cujo amor próprio é menor do que o amor pelo namorado. Por isso, Marcos – e nós leitores – vê nela uma necessidade de proteção. Talvez por isso ele pense em formas de encontrá-la, para salvá-la de si mesma.
Mas o mundo é cruel e nem todos estão à procura de salvação. No fundo, Flores azuis é a jornada de Marcos em busca da compreensão de si mesmo. As cartas misteriosas são uma espécie de catalisador para a sua transformação pessoal. Em Toda terça há um artifício parecido que une personagens, e mesmo em alguns contos do primeiro livro de Saavedra há pistas de que algo parecido possa acontecer – especialmente no que se refere a um dos relatos, envolvendo o romance A redoma de vidro, de Sylvia Plath.
Flores azuis alterna, ao longo de suas páginas, cartas – em primeira pessoa – e a narrativa sobre Marcos – em terceira pessoa. Carola Saavedra nunca cai no equívoco mais comum quando há uma alternância de narradores: as vozes são completamente distintas – cada um conta sua história ao seu modo.
Nascida no Chile, mas vivendo no Brasil desde bem pequena, Carola Saavedra se firma como um dos nomes mais instigantes da literatura brasileira contemporânea. Sua prosa é tecida com vigor juvenil e a segurança de mãos veteranas. Seus personagens nos são apresentados como pessoas de verdade e por isso ganham tanta credibilidade. Distante de malabarismos lingüísticos, ou pirotecnias narrativas, a autora mostra que a prosa meditada ainda é o que de mais forte um romance pode nos apresentar. Seu efeito, ao final, é devastador, quando percebemos que a escrita realmente pode ser cheia de mal-entendidos, e nós, vítimas ou algozes.